O ser mulher
Nunca entendeu o por quê do fato de ser mulher lhe trazer uma gama de especificidades tão grandes, impositivas e das quais era impossível fugir. O ser mulher, na verdade, representava sempre um grande mistério. Por isso, não pensava muito nisso. Simplesmente vivia, tentava agir como ser humano, completo, dotado de vontades, restrições, defeitos e de escolhas. Entendia que lutar por ser mulher em um mundo machista, não era lutar para ser especifica, mas para ser o todo. Os homens, já que referência e parâmetro de humano no mundo, eram o todo. As mulheres, um aglomerado de pequenas especialidades fragmentadas que somente elas poderiam ter. E para o mundo, isso parecia ser a definição de ser mulher. Por isso ela queria ser humana. Fazer o que gostasse escolhendo entre o que todos e todas faziam, e dessa forma, superar a condição restritiva que lhe fora imposta.
Quando era pequena, queria muito um canivete. Ninguém lhe dizia que não poderia possuí-lo porque se tratava de uma arma, mas porque não era coisa de menina. Quando grande, entende sua desumanização pela excludente concepção de gênero. E promete ser humana, mesmo que para os olhares alheios, ser humana continue significando ser ou parecer um homem.
Certa vez, ganhou de um namorado um conjunto de lingerie. Detestou. Se sentiu invadida. Como uma manequim de loja vestida para ser consumida. Devolveu. Disse que não servia. Posteriormente o moço, já um pouco mais atencioso, percebeu o quanto ela gostava de canivetes e lhe deu um. Seu rosto se iluminou e enfim, pela primeira vez em todo o relacionamento, sentiu que ele a percebia como uma pessoa, e não apenas como o que ele concebia por mulher. Apenas então conseguiu, uma vez pelo menos, dizer-lhe que tinha ciúme em certa ocasião, sem com isso, ver-se reduzida a nada, ou a histeria tipicamente feminina (o que dá na mesma).
Posteriormente, seu canivete tinha ido parar, por descuido, na mão de um garoto de uns 10 anos.
-Dá ele para mim tia?
-Não.
-Mas por quê?
-Porque você é ainda criança....
-Mas você é mulher.... e mulher não precisa de canivete.
O canivete furou-lhe o peito. Furiosa.
-Escuta garoto, você não pode ter o canivete porque ainda é uma criança, entendeu? Por que é pequeno, só por isso. Eu passei a vida ouvindo que não poderia ter um canivete porque sou mulher e olha só! Eu posso sim. Porque sou grande. Da mesma forma que você também poderá ter um. Quando for grande.
Entendia o absurdo de praticamente bater boca com uma criança que, sem defesa, simplesmente calou-se. E mais ainda, absurdou-se com a cara de seu amor, que ali do lado fazia um ar de não entendi com um pouco de admiração. O mesmo amor que lhe diria, tempos depois, que ela se escondia de sua insegurança tentando parecer um homem. Sendo bagunceira, bebendo e fumando como um homem. Percebeu que ele entendia bem menos do que imaginara. Bem menos do que o garoto de 10 anos.
Então devia ser isso. Ser mulher é ser nada. Principalmente, ser nada que se aproxime do que é ser homem. Ou ser qualquer coisa desde que distante do que é ser homem.E se o conceito de ser humano, se a referência do mundo é toda construída sobre o masculino, ela portanto, não podia apropriar-se do mundo, porque senão, estaria fazendo coisas de homem, querendo esconder-se, querendo parecer um. Apenas continuaria mulher enquanto se omitisse do mundo, ficando para ela apenas o submundo envolto em subjetividade e particularidades femininas que lhe cabiam. Não poderia sair dali enquanto quisesse continuar a ser mulher.
Optou pela dor de não ser para eles, para o mundo masculino composto por homens e mulheres. Optou em ser para ela, e não se amargurar mais com isso. Por tempos esqueceu. Achou que havia resolvido intimamente essa questão, que se acostumava e isso era bom porque também era preciso libertar o pensamento para outros olhares, com outras questões.
- Você é uma mulher !
De novo pasma. Dessa vez em uma situação em que a dicotomia homem – mulher não poderia, de forma alguma, ser suprimida.
- Ah é?
Realmente não entendeu. Era um elogio? Ela deveria ficar lisonjeada por ser mulher? Agradecer? Por quê? Porque você está deprimido e ela te escuta como um inteiro, sem julgar, buscando apenas compreender. Por isso, pela compreensão, ela é mulher. Não poderia ser banalmente pronunciado um descomprometido, bacana no lugar de mulher? Porque ele usava a palavra daquela forma, como se fosse um adjetivo o que é condição?
E perdeu-se....pensava que temos que ser nada, porque tudo é masculino. Mas temos que ser tudo, porque somos mulher também quando damos respaldo para o tudo. Quando somos companheiras, bonitas, que sabem cozinhar, trabalham de forma assalariada (viva a conquista da mulher de classe média que transforma seus problemas de classe em universais), belas amantes, porém racionais, etc, etc, etc. O que diz, o que explica esse mulher-adjetivo, pois que, sendo adjetivo, cabe e utiliza-se apenas em determinadas circunstâncias.
Mas e as outras? Poderão elas, não ser mulher? E eu? Posso, diante de alguns, não ser mulher?
Não se respondeu. Apenas teve medo que aos olhos dos outros, do mundo masculino, a resposta possa ser, por mais absurdo que pareça, sim.
Quando era pequena, queria muito um canivete. Ninguém lhe dizia que não poderia possuí-lo porque se tratava de uma arma, mas porque não era coisa de menina. Quando grande, entende sua desumanização pela excludente concepção de gênero. E promete ser humana, mesmo que para os olhares alheios, ser humana continue significando ser ou parecer um homem.
Certa vez, ganhou de um namorado um conjunto de lingerie. Detestou. Se sentiu invadida. Como uma manequim de loja vestida para ser consumida. Devolveu. Disse que não servia. Posteriormente o moço, já um pouco mais atencioso, percebeu o quanto ela gostava de canivetes e lhe deu um. Seu rosto se iluminou e enfim, pela primeira vez em todo o relacionamento, sentiu que ele a percebia como uma pessoa, e não apenas como o que ele concebia por mulher. Apenas então conseguiu, uma vez pelo menos, dizer-lhe que tinha ciúme em certa ocasião, sem com isso, ver-se reduzida a nada, ou a histeria tipicamente feminina (o que dá na mesma).
Posteriormente, seu canivete tinha ido parar, por descuido, na mão de um garoto de uns 10 anos.
-Dá ele para mim tia?
-Não.
-Mas por quê?
-Porque você é ainda criança....
-Mas você é mulher.... e mulher não precisa de canivete.
O canivete furou-lhe o peito. Furiosa.
-Escuta garoto, você não pode ter o canivete porque ainda é uma criança, entendeu? Por que é pequeno, só por isso. Eu passei a vida ouvindo que não poderia ter um canivete porque sou mulher e olha só! Eu posso sim. Porque sou grande. Da mesma forma que você também poderá ter um. Quando for grande.
Entendia o absurdo de praticamente bater boca com uma criança que, sem defesa, simplesmente calou-se. E mais ainda, absurdou-se com a cara de seu amor, que ali do lado fazia um ar de não entendi com um pouco de admiração. O mesmo amor que lhe diria, tempos depois, que ela se escondia de sua insegurança tentando parecer um homem. Sendo bagunceira, bebendo e fumando como um homem. Percebeu que ele entendia bem menos do que imaginara. Bem menos do que o garoto de 10 anos.
Então devia ser isso. Ser mulher é ser nada. Principalmente, ser nada que se aproxime do que é ser homem. Ou ser qualquer coisa desde que distante do que é ser homem.E se o conceito de ser humano, se a referência do mundo é toda construída sobre o masculino, ela portanto, não podia apropriar-se do mundo, porque senão, estaria fazendo coisas de homem, querendo esconder-se, querendo parecer um. Apenas continuaria mulher enquanto se omitisse do mundo, ficando para ela apenas o submundo envolto em subjetividade e particularidades femininas que lhe cabiam. Não poderia sair dali enquanto quisesse continuar a ser mulher.
Optou pela dor de não ser para eles, para o mundo masculino composto por homens e mulheres. Optou em ser para ela, e não se amargurar mais com isso. Por tempos esqueceu. Achou que havia resolvido intimamente essa questão, que se acostumava e isso era bom porque também era preciso libertar o pensamento para outros olhares, com outras questões.
- Você é uma mulher !
De novo pasma. Dessa vez em uma situação em que a dicotomia homem – mulher não poderia, de forma alguma, ser suprimida.
- Ah é?
Realmente não entendeu. Era um elogio? Ela deveria ficar lisonjeada por ser mulher? Agradecer? Por quê? Porque você está deprimido e ela te escuta como um inteiro, sem julgar, buscando apenas compreender. Por isso, pela compreensão, ela é mulher. Não poderia ser banalmente pronunciado um descomprometido, bacana no lugar de mulher? Porque ele usava a palavra daquela forma, como se fosse um adjetivo o que é condição?
E perdeu-se....pensava que temos que ser nada, porque tudo é masculino. Mas temos que ser tudo, porque somos mulher também quando damos respaldo para o tudo. Quando somos companheiras, bonitas, que sabem cozinhar, trabalham de forma assalariada (viva a conquista da mulher de classe média que transforma seus problemas de classe em universais), belas amantes, porém racionais, etc, etc, etc. O que diz, o que explica esse mulher-adjetivo, pois que, sendo adjetivo, cabe e utiliza-se apenas em determinadas circunstâncias.
Mas e as outras? Poderão elas, não ser mulher? E eu? Posso, diante de alguns, não ser mulher?
Não se respondeu. Apenas teve medo que aos olhos dos outros, do mundo masculino, a resposta possa ser, por mais absurdo que pareça, sim.
Cathola