2006/09/15

Não se sabe



Depois de algum tempo separados, estavam ali. Deitados um de costas pro outro, sem se tocar. Estavam cansados e com sono, mas como dormir? O cheiro dos seus corpos era alimento para aquele desejo que há muito insistiam em sufocar e para a imaginação que impedia que os olhos , mesmo no escuro, se fechassem.
Ele estava de bruços, ela deitada de lado. Fingiam dormir. Ela estava inquieta, ele paralisado. Ficaram alguns minutos assim, um deles os sentia como se fossem intermináveis. Ela tocou-lhe os cabelos, que, apesar dos protestos dela em contrário, ele agora usava muito curtos. Ela fez carinhos, ele não se mexeu. “Está acordado!”, pensou ela, que continuou a acariciá-los do jeito mais delicado que as suas pesadas mãos podiam fazer.
Ele se mexeu. Ela estremeceu.
Mudou de posição e se colocou à disposição dos carinhos dela, como outrora haviam feito muitas vezes. “Dá vontade de nem dormir!” teria dito ele em outros tempos, agora economizavam comentários. Estavam lado a lado, com colchões e cobertores separados, numa frágil e inútil tentativa de dormir junto sem dormir juntos.
Não se sabe como foram parar os dois no mesmo colchão e sob o mesmo cobertor. Deve ter sido num daqueles momentos em que palavras são dispensáveis, em que se sabe de tudo (ou se pensa que sabe) sem precisar dizer, sem precisar ver nos olhos, sem precisar de nada, só faz e se sente bem fazendo. Deve ser aquela hora em que somos guiados por odores, cores, texturas, por um conhecimento tão desconhecido, em que ficamos empanzinados de mundo e cheios de vida, tudo junto, misturado. O que se sabe é que se beijaram com vontade, que se amaram durante algumas horas, que disseram obscenidades que não teriam coragem de repetir em outras ocasiões (e que fingem esquecer quando tudo acaba) e que mataram uma saudade que insistiam em não sentir.
Dormiram. Um de bruços o outro de lado, depois de terem conversado pouco e de terem beijado e abraçado muito. Estavam satisfeitos, talvez felizes. Não se sabe se com o sexo ou com a companhia, ou quem sabe com o conjunto da obra?
Não fizeram promessas, nem planos, não planejaram o próximo encontro, um deles até tentou, timidamente, insinuar que não haveria próximo encontro. O outro suplicou em silêncio para que tal não fosse verdade.
Pela manhã, um deles acordara vestido. Tinha sentido frio durante a noite e, para não acordar o outro, se vestiu mantendo o corpo um pouco afastado. Acordou mais tarde no vão entre os dois colchões, se ajeitou e, aproveitando que o outro ainda dormia, retomou o sono, acordando mais tarde com um braço a envolver-lhe a garganta inflamada.
- Bom dia! – ouviu ao longe, ainda sonolenta, seguido de um beijo que não sabe direito onde foi dado.
Ela o ama, profundamente.
Ele só quase.

X.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

X que bonito e que triste... Lembrei-me de um poeminha do Cacaso:

AH!

Ah se pelo menos o pensamento não sangrasse!
Ah se pelo menos o coração não tivesse memória!
Como seria menos linda e mais suave minha história!


E mais outra...

E se não tivesse o amor
E se não tivesse essa dor...

Beijo,
Aline.

3:15 PM  
Anonymous Anônimo said...

Nossa, obrigada!
Fiquei até sem palavras...
Beijo,
X.

10:38 PM  
Blogger Flávia Santos said...

Me lembrou Platão "o banquete" na fala de Sócrates, acho!!! e me lembrou um poema do Pessoa..tá ai em baixo ( o Do Cacaso ai é muito bom) ...acredito que os tres o seu texto e os poemas falem da mesma coisa: incompletude e busca..
.. continua continua escreve escreve escreve!!!!!
bjus e sódades

Eros e Psique
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.


Fernando Pessoa

3:54 PM  

Postar um comentário

<< Home