2007/05/29

Trecho

Hoje amanheceu aqueles dias de caos. E nem sempre é fácil pôr o mundo em ordem, sobretudo se não sobra nada pronto do dia anterior, e a gente tem de sempre começar, ajustar o foco, o encontrar o caminho e endireitar o passo.

Mas um céu tão cinza, um aleijado no corredor do ônibus, tanta loja, tanto lixo, tanta gente na rua, da rua, tanto de tudo, e funcionando perfeitamente, cada coisa no seu lugar. Não noto nada que exija algo além de simplesmente me deixar levar neste fluxo colossal, incomensurável. E se dentro de mim alguma coisa urgir - de quando em quando me olho no espelho - sempre posso tentar o hedonismo. Não tento porque poderia descobrir que ele é efetivamente bom, e aí tudo continuaria assim, sem precisar de mim.

Ainda assim, parada em frente ao espelho, nua, olho os olhos, os cabelos, a pele (que tem andado tão feia), o corpo todo. Uso cremes, um para o corpo, outro pro cabelo, mais um pras axilas, um pózinho pros pés. Perco muito tempo em frente ao espelho e o guarda-roupas, que embora esteja cheio sempre parece faltar algo. Saio e o céu continua cinza. Tá bem frio.

Dou bom dia pro nordestino que abre o portão, pra peruana que vende tricôs na esquina e pro paulista da pizzaria, que diz bom dia a todas as mulheres que passam por lá. Desço a rua perdida em pensamentos. Não vejo a moça com o cobertor de bebê sem a criança andando devagar em frente ao hospital, nem a outra que carrega o filho já grande e pesado, pro mesmo lugar. Nem a cega, de braço dado com alguém, ou a que não tem mais os cabelos, provavelmente perdidos em algum tratamento. Não reparo no menino descalço e sujo que dorme em frente o bar ou no homem que prefere ser mulher.

Paro na esquina, esperando acender o bonequinho verde no poste. Continuo perdida em mim mesma. E tudo parece continuar assim, sem precisar de mim.

X e FB

2007/02/01

2007/01/19

Fumando salgadinho e comendo bituca (da série tia zona style)

Pela primeira vez em duas semanas, estivemos na Argentina. Uma casa rota, à luz de vela, um só comodo para abrigar o tango reproduzido na vitrola esquecida eduas garrafas de concha y toro por quinze pesos cada.
Até entao, a melancolia como parte do ser argentino parecia nao passar de um mito forjado superficialmente nos dancarinos que maquinalmente exibiam as passadas do tango pelas ruas turísticas. Nao se sente a musica chororosa com a danca profundamente sensual. O tango e toda a tristeza tranquila, para dentro, e que invade tudo marejando os olhos de saudades, passa a ser meramente uma tradicao caricata.
No entanto nessa casa, até o homem que parecia o dono do lugar tinha um sorriso triste e tranquilo como de quem vivera tudo isso por uns trezentos e cinquenta anos. Mas só foram trinta.
O lugar era escuro e na penumbra dos olhos do velho parecia estar toda a Argentina. Cansada, antiga, mae. Mae de ventre rebelde. Os rebentos dela gritam, choram e esperneiam pelas ruas do Retiro e pela terra pisada de La Matanza: No chao, a marca do pneu queimado em plena Avenida de Mayo. E um rosto familiar pichado no muro.
De repente, o tango deu lugar ao Pink Floyd. E nos lembrou o que eramos, imersos naquele ar de que tudo ja estava feito, lembramos que apesar de termos vivido nos últimos dias como jovens senhoras e que o bar era apenas o cenário de um jeito peculiar de estar aqui. Lembramos que nao eramos pessoas de 40 anos como estavamos nos sentindo em diversos momentos. Na quase escuridao do quintalem que mal se via as pessoas da mesa ao lado:
- Julia, acho que você bateu a cinza na batatinha.
Era um salgadinho servido em um potinho parecido com o cinzeiro. Salgadinho com cinza. Mais adiante, na mesa de espirito geriátrico, Cássia, a velhinha já caduca e esquecida...
- Puts que merda, comi a bituca.
Cuspindo um salgadinho de filtro amarelo.
Nesse momento, sentinos culpa por nao participarmos mais do movimento estudantil.
Catchola e Juju
-Clínica de Recuperacao com turismo político
2 semanas =
-1 ressaca
-0 drogas pesadas
-6 e meio baseados
-25 carteiras de cigarro
-12 horas de sono diários
-1 hostel de hippies que acham que a gente é careta.

2006/12/15

Encaixotava a cara, o bar ia fechando.
As luzes caíam muito sem-vergonha,
sombreando os vultos. Os cacos quebrados pelo
chão se abriam, as mesas caminhavam debaixo dos guardanapos que morriam - voavam os copos em volta do
ventilador.O bar fechava.
De vez em quando um homem muito
antigo conseguia um lugar para sentar,
se embebedar nesses olhos...
E no dia seguinte era a sede,
empoeirada e amarrada debaixo de cinco mil sóis.
Sede a ponto de ver o próprio corpo virando
água salgada.
Porre de mágoa.

Carolzita

2006/12/08

Don´t cry ai ai ai ai ai ai ai ai ai ai ai ai. Ai ai ai ai ai! Broken hearts for you and me...


Há sete anos uma amiga morreu. Acidente de moto, corpo irreconhecível, sem família, sem velório, sem missa. Hoje já estou mais velha do que ela naquele dia, com seus 25 anos.
Passei dois meses da minha vida anestesiada pela sua morte. Talvez nunca tenha usado tanta droga como naquele tempo, não importava o lugar. Só a anestesia. Quando voltei ao "normal" sentia só aquela confirmação do que é inevitável. Todo mundo morre, o que muda é o jeito e o nosso envolvimento com a situação. Sentia muita raiva, raiva de precisar gritar. Sentia raiva de quem parecia não se importar, de quem parecia não sofrer e de quem pedia para eu tirar a fita do TRIO porque estávamos de luto. “Podíamos colocar um sonzinho mais tranqüilo, né?” Não. Eu estava punk e viciada no som que ela tinha me mostrado, que ouvia na sua fase skatista em Porto Alegre.
A mina fazia muitas coisas bem, desenhava, fotografava, tocava qualquer instrumento musical, ouvia um pouquinho e já reproduzia... podia ser flauta, violão, ocarina... era foda. Trabalhava em qualquer trampo, desde que pagasse suas baladinhas e suas droguitchas. Tinha talentos que todo mundo via, mas ela só achava natural. Não queria saber de fazer faculdade como todo mundo fazia, era como se ela não precisasse. E não precisava mesmo. Enquanto estávamos envolvidas com nosso “dramático” fim de semestre e em nossas crises existenciais do tipo “não agüento mais essa faculdade”, ela chegava cansada do trampo no shopping, dava uma reclamada e depois já arrumava uma baladinha. Sempre tinha um gatinho na parada, sempre estava a fim de fazer alguma coisa. Morreu cedo e não perdeu tempo nenhum fazendo planos para o futuro. Viveu muito, foi alegre, intensa, dava muita risada e fumava muita maconha. Era legal nossa vida juntas.
Hoje acordei e resolvi colocar meu disco do TRIO, fiquei ouvindo, cantei todas as músicas, até dancei... Depois fiquei conversando e rindo sobre como ela inventava as traduções onomatopéicas das letras em alemão. “Numa próxima vez, você morre de vez! Você tem que entender que str hus afta...”. Aí, “que dia é hoje?” “8 de dezembro”. “Foi nesse dia que ela morreu..."
Fazia anos que não chorava por ela, mas hoje chorei. Acendi uma vela como nunca faço e pensei nessa coisa toda que envolve a morte. Não me lembro de ter me lembrado dela assim nos últimos tempos, muito menos de ter sofrido por ela. Mas hoje veio tudo.
(aline)

2006/11/13

O ser mulher

Nunca entendeu o por quê do fato de ser mulher lhe trazer uma gama de especificidades tão grandes, impositivas e das quais era impossível fugir. O ser mulher, na verdade, representava sempre um grande mistério. Por isso, não pensava muito nisso. Simplesmente vivia, tentava agir como ser humano, completo, dotado de vontades, restrições, defeitos e de escolhas. Entendia que lutar por ser mulher em um mundo machista, não era lutar para ser especifica, mas para ser o todo. Os homens, já que referência e parâmetro de humano no mundo, eram o todo. As mulheres, um aglomerado de pequenas especialidades fragmentadas que somente elas poderiam ter. E para o mundo, isso parecia ser a definição de ser mulher. Por isso ela queria ser humana. Fazer o que gostasse escolhendo entre o que todos e todas faziam, e dessa forma, superar a condição restritiva que lhe fora imposta.

Quando era pequena, queria muito um canivete. Ninguém lhe dizia que não poderia possuí-lo porque se tratava de uma arma, mas porque não era coisa de menina. Quando grande, entende sua desumanização pela excludente concepção de gênero. E promete ser humana, mesmo que para os olhares alheios, ser humana continue significando ser ou parecer um homem.
Certa vez, ganhou de um namorado um conjunto de lingerie. Detestou. Se sentiu invadida. Como uma manequim de loja vestida para ser consumida. Devolveu. Disse que não servia. Posteriormente o moço, já um pouco mais atencioso, percebeu o quanto ela gostava de canivetes e lhe deu um. Seu rosto se iluminou e enfim, pela primeira vez em todo o relacionamento, sentiu que ele a percebia como uma pessoa, e não apenas como o que ele concebia por mulher. Apenas então conseguiu, uma vez pelo menos, dizer-lhe que tinha ciúme em certa ocasião, sem com isso, ver-se reduzida a nada, ou a histeria tipicamente feminina (o que dá na mesma).
Posteriormente, seu canivete tinha ido parar, por descuido, na mão de um garoto de uns 10 anos.
-Dá ele para mim tia?
-Não.
-Mas por quê?
-Porque você é ainda criança....
-Mas você é mulher.... e mulher não precisa de canivete.
O canivete furou-lhe o peito. Furiosa.
-Escuta garoto, você não pode ter o canivete porque ainda é uma criança, entendeu? Por que é pequeno, só por isso. Eu passei a vida ouvindo que não poderia ter um canivete porque sou mulher e olha só! Eu posso sim. Porque sou grande. Da mesma forma que você também poderá ter um. Quando for grande.
Entendia o absurdo de praticamente bater boca com uma criança que, sem defesa, simplesmente calou-se. E mais ainda, absurdou-se com a cara de seu amor, que ali do lado fazia um ar de não entendi com um pouco de admiração. O mesmo amor que lhe diria, tempos depois, que ela se escondia de sua insegurança tentando parecer um homem. Sendo bagunceira, bebendo e fumando como um homem. Percebeu que ele entendia bem menos do que imaginara. Bem menos do que o garoto de 10 anos.

Então devia ser isso. Ser mulher é ser nada. Principalmente, ser nada que se aproxime do que é ser homem. Ou ser qualquer coisa desde que distante do que é ser homem.E se o conceito de ser humano, se a referência do mundo é toda construída sobre o masculino, ela portanto, não podia apropriar-se do mundo, porque senão, estaria fazendo coisas de homem, querendo esconder-se, querendo parecer um. Apenas continuaria mulher enquanto se omitisse do mundo, ficando para ela apenas o submundo envolto em subjetividade e particularidades femininas que lhe cabiam. Não poderia sair dali enquanto quisesse continuar a ser mulher.
Optou pela dor de não ser para eles, para o mundo masculino composto por homens e mulheres. Optou em ser para ela, e não se amargurar mais com isso. Por tempos esqueceu. Achou que havia resolvido intimamente essa questão, que se acostumava e isso era bom porque também era preciso libertar o pensamento para outros olhares, com outras questões.

- Você é uma mulher !

De novo pasma. Dessa vez em uma situação em que a dicotomia homem – mulher não poderia, de forma alguma, ser suprimida.
- Ah é?
Realmente não entendeu. Era um elogio? Ela deveria ficar lisonjeada por ser mulher? Agradecer? Por quê? Porque você está deprimido e ela te escuta como um inteiro, sem julgar, buscando apenas compreender. Por isso, pela compreensão, ela é mulher. Não poderia ser banalmente pronunciado um descomprometido, bacana no lugar de mulher? Porque ele usava a palavra daquela forma, como se fosse um adjetivo o que é condição?

E perdeu-se....pensava que temos que ser nada, porque tudo é masculino. Mas temos que ser tudo, porque somos mulher também quando damos respaldo para o tudo. Quando somos companheiras, bonitas, que sabem cozinhar, trabalham de forma assalariada (viva a conquista da mulher de classe média que transforma seus problemas de classe em universais), belas amantes, porém racionais, etc, etc, etc. O que diz, o que explica esse mulher-adjetivo, pois que, sendo adjetivo, cabe e utiliza-se apenas em determinadas circunstâncias.
Mas e as outras? Poderão elas, não ser mulher? E eu? Posso, diante de alguns, não ser mulher?
Não se respondeu. Apenas teve medo que aos olhos dos outros, do mundo masculino, a resposta possa ser, por mais absurdo que pareça, sim.
Cathola

2006/11/07

Uma pergunta

"Já te ocorreu que amamos através do mesmo orifício que nos transforma em mães?"
(Marcela Serrano)