2006/11/13

O ser mulher

Nunca entendeu o por quê do fato de ser mulher lhe trazer uma gama de especificidades tão grandes, impositivas e das quais era impossível fugir. O ser mulher, na verdade, representava sempre um grande mistério. Por isso, não pensava muito nisso. Simplesmente vivia, tentava agir como ser humano, completo, dotado de vontades, restrições, defeitos e de escolhas. Entendia que lutar por ser mulher em um mundo machista, não era lutar para ser especifica, mas para ser o todo. Os homens, já que referência e parâmetro de humano no mundo, eram o todo. As mulheres, um aglomerado de pequenas especialidades fragmentadas que somente elas poderiam ter. E para o mundo, isso parecia ser a definição de ser mulher. Por isso ela queria ser humana. Fazer o que gostasse escolhendo entre o que todos e todas faziam, e dessa forma, superar a condição restritiva que lhe fora imposta.

Quando era pequena, queria muito um canivete. Ninguém lhe dizia que não poderia possuí-lo porque se tratava de uma arma, mas porque não era coisa de menina. Quando grande, entende sua desumanização pela excludente concepção de gênero. E promete ser humana, mesmo que para os olhares alheios, ser humana continue significando ser ou parecer um homem.
Certa vez, ganhou de um namorado um conjunto de lingerie. Detestou. Se sentiu invadida. Como uma manequim de loja vestida para ser consumida. Devolveu. Disse que não servia. Posteriormente o moço, já um pouco mais atencioso, percebeu o quanto ela gostava de canivetes e lhe deu um. Seu rosto se iluminou e enfim, pela primeira vez em todo o relacionamento, sentiu que ele a percebia como uma pessoa, e não apenas como o que ele concebia por mulher. Apenas então conseguiu, uma vez pelo menos, dizer-lhe que tinha ciúme em certa ocasião, sem com isso, ver-se reduzida a nada, ou a histeria tipicamente feminina (o que dá na mesma).
Posteriormente, seu canivete tinha ido parar, por descuido, na mão de um garoto de uns 10 anos.
-Dá ele para mim tia?
-Não.
-Mas por quê?
-Porque você é ainda criança....
-Mas você é mulher.... e mulher não precisa de canivete.
O canivete furou-lhe o peito. Furiosa.
-Escuta garoto, você não pode ter o canivete porque ainda é uma criança, entendeu? Por que é pequeno, só por isso. Eu passei a vida ouvindo que não poderia ter um canivete porque sou mulher e olha só! Eu posso sim. Porque sou grande. Da mesma forma que você também poderá ter um. Quando for grande.
Entendia o absurdo de praticamente bater boca com uma criança que, sem defesa, simplesmente calou-se. E mais ainda, absurdou-se com a cara de seu amor, que ali do lado fazia um ar de não entendi com um pouco de admiração. O mesmo amor que lhe diria, tempos depois, que ela se escondia de sua insegurança tentando parecer um homem. Sendo bagunceira, bebendo e fumando como um homem. Percebeu que ele entendia bem menos do que imaginara. Bem menos do que o garoto de 10 anos.

Então devia ser isso. Ser mulher é ser nada. Principalmente, ser nada que se aproxime do que é ser homem. Ou ser qualquer coisa desde que distante do que é ser homem.E se o conceito de ser humano, se a referência do mundo é toda construída sobre o masculino, ela portanto, não podia apropriar-se do mundo, porque senão, estaria fazendo coisas de homem, querendo esconder-se, querendo parecer um. Apenas continuaria mulher enquanto se omitisse do mundo, ficando para ela apenas o submundo envolto em subjetividade e particularidades femininas que lhe cabiam. Não poderia sair dali enquanto quisesse continuar a ser mulher.
Optou pela dor de não ser para eles, para o mundo masculino composto por homens e mulheres. Optou em ser para ela, e não se amargurar mais com isso. Por tempos esqueceu. Achou que havia resolvido intimamente essa questão, que se acostumava e isso era bom porque também era preciso libertar o pensamento para outros olhares, com outras questões.

- Você é uma mulher !

De novo pasma. Dessa vez em uma situação em que a dicotomia homem – mulher não poderia, de forma alguma, ser suprimida.
- Ah é?
Realmente não entendeu. Era um elogio? Ela deveria ficar lisonjeada por ser mulher? Agradecer? Por quê? Porque você está deprimido e ela te escuta como um inteiro, sem julgar, buscando apenas compreender. Por isso, pela compreensão, ela é mulher. Não poderia ser banalmente pronunciado um descomprometido, bacana no lugar de mulher? Porque ele usava a palavra daquela forma, como se fosse um adjetivo o que é condição?

E perdeu-se....pensava que temos que ser nada, porque tudo é masculino. Mas temos que ser tudo, porque somos mulher também quando damos respaldo para o tudo. Quando somos companheiras, bonitas, que sabem cozinhar, trabalham de forma assalariada (viva a conquista da mulher de classe média que transforma seus problemas de classe em universais), belas amantes, porém racionais, etc, etc, etc. O que diz, o que explica esse mulher-adjetivo, pois que, sendo adjetivo, cabe e utiliza-se apenas em determinadas circunstâncias.
Mas e as outras? Poderão elas, não ser mulher? E eu? Posso, diante de alguns, não ser mulher?
Não se respondeu. Apenas teve medo que aos olhos dos outros, do mundo masculino, a resposta possa ser, por mais absurdo que pareça, sim.
Cathola

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Eita Catholinha... quanta coisa pra pensar, hen? Você sempre surpreende com uns textos desses, densos, bons... Mas, mesmo sendo nós, mulheres, uma espécie de apêndice do mundo que é dos homens...acho bem divertido ficar com você de sainha e batom, copo de cerveja, cigarro e uma bela mesa de sinuca... masculino isso?? Não, Cassinha... isso é nóis!!!

Amor

5:44 PM  
Anonymous Anônimo said...

Amei o texto!
Espero convite pra sinuca de sainha...

Bia

10:34 AM  
Anonymous Anônimo said...

Muito massa o seu texto, digno de uma escritora. É pra todas nós, mulheres, pensarmos na nossa condição de vida

9:13 PM  
Blogger kapunk said...

Muito bom o texto Cassia, apesar de não parar muito para refletir sobre o assunto em questão,me identifiquei e me lembrei das revolucionárias espanholas que diziam:"igualdade não; equivalencia".Estou com saudades e quero muito me comunicar com você pessoalmente o mais rápido possível. abraço kapunk(henfil-mauá) se lembra?

3:34 PM  
Blogger GRIF Maçãs Podres - Anonymous said...

Mulher...mandou bem no texto!Foda! Esse lance de ser "mulher" nessa sociedade vem mesmo com uma série de arquétipos impostos a nós,(Seres Humanos de múltiplas capacidades), assumindo o papel do que é ser "homem" tbm de forma violenta. Também acreditamos na emancipação humana a partir da mulher "todo" e não "partes", revendo assim a síndrome do machismo que acabamos de ser cúmplices, até no momento em que parecemos resistir. Nós do blog Maçãs Podres parabenizamos todas vocês pela admirável reflexão. Contato: nucleo.generosb@gmail.com

12:32 AM  
Anonymous Anônimo said...

Oi,

seu texto é muito bom. Diz coisas realmente difíceis, muito próprias, muito particulares das mulheres. Tem que ser lido. Deveria ser divulgado.

Mesmo assim, acho que é injusto o que vc disse dos homens em geral, das mulheres que não se sentem como você e do "mundo".

Sei lá. Apesar de toda a boa afirmação e a vontade de justiça que há nessa posição de querer poder ser absolutamente identica a si mesma, ela depende de afirmar que o padrão que há disponível é único, sendo que ele não é mais (apesar de o masculino ser dominante). No que se refere ás relações, parece que é necessário que um homem nunca entenda o que é uma mulher, para que ela seja mulher. Nao só um homem. As mulheres insensíveis que não se constituem em contradição com o princípio masculino também. E o mundo, também, que segundo a sua perspectiva é unilateralmente masculino.

Isso não é muito verdadeiro.

Não é verdadeiro em relação ao mundo - que já é mais aberto, também para as mulheres pobres, que, se sempre contribuíram para a renda familiar, agora têm se tornado provedora, sem o marido poder explorá-la, vexado diante do xeque contra o machismo.

Não é em relação aos homens - que, no meu caso, por exemplo, até querem que as mulheres sejam mesmo afirmativas, só não violentas e vulgares (meu sonho é ser pego sem conversa por uma menina! E que ela só queira ficar comigo quando lhe der na cuca. E que realizem seus sonhos que não têm nada a ver comigo também).

E, arrisco, não é verdadeiro em relação a você - senão, não haveria sofrimento, você não precisaria que o mundo fosse do jeito que você quer nem que o sexo oposto entendesse imediatamente o que você quer.

Sei lá, posso estar errado, mas tenho a impressão de que todo mundo só quer ser o que é à condição de não expulsar de si o mundo, o sexo pelo qual sente-se atraído e os pares de gênero. Estejam eles afinados ou não com esse descontentamento. Ninguém é uma ilha.

Quer dizer, ainda aí, nessa disposição de olhar de frente a condição de ser mulher, de dizê-la (a ilha serve pra isso, não pra ser habitada), não há perspectiva de tentar mudar as coisas (ou tornar mais amplo e legítimo um processo de abertura que já está acontecendo), para que a tal "equivalência" seja real. O que é mulher, aí, só está dado em negativo, dependente da hostilidade de todos contra ela.
No fundo, parece que o que é atraente aí é agarrar-se à dolorosa riqueza do particular, à sutil, complexa condição feminina (que afinal não é nada mais do que uma ilusão... masculina). Há um desejo de assumir-se, mas só na medida em que a afirmação não seja compreendida, na medida em que fique fora do mundo, além da sua capacidade de tornar essa afirmação algo dominante, em par com o princípio masculino, sem excluí-lo.

Sei lá... muito legal o texto, mas conduz à mesma hostilidade que a gente vê todos os dias: razões e razões pra que os gêneros e também as pessoas não se entendam, e continuem a se oprimir umas às outras.

Na minha singela opinião, o duro mesmo é conseguir manter essas demandas e ainda querer essa integração na diferença.

O mercado vem fazendo isso. E é no mínimo ruim que as mulheres que reconhecem o limite de classe dessa emancipação desistam de fazer a mesma coisa.

ass.: obviamente, um homem. Mas diferente do que você imagina.

9:58 AM  

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